segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Nossa Amizade By Luiz Britto | Dezembro 12, 2009 - 8:00 am - Posted in Crônicas

(MENINAS LENDO - PICASSO)

Gente que a gente conhece há muito tempo é como um bom sapato velho: é macio, o nosso pé já está acostumado com ele, não estranha. O sapato já faz parte da vida da gente, é um complemento agradável e bem aceito. Gente é a mesma coisa: os velhos amigos. Ficamos à vontade. Mesmo que não os vejamos há muito tempo, em minutos ou segundos volta a mesma amizade, a mesma intimidade, sentimo-nos bem, deslizamos numa conversa amável, sem arestas, e com plenitude de assuntos. Outro dia aconteceu assim com Widmer e com Dionísio — este não via há anos — quando os encontrei num casamento. E, mais recentemente, com Thomaz e Lalado.
São tipos bem distintos, quase estão nas pontas extremas do mesmo arco. Thomaz faz o seu cooper matinal quando pode, e assim eu o encontrei na Centenário: andando, sapato tipo Nyke nos pés, camisa nova, colorida, um ar preocupado. Ele tem muitos afazeres, aquela andança tem seus minutos contados. Dali vai para a Faculdade, para as aulas, na madrugada passada esteve corrigindo provas de alunos, e então tem pacientes esperando por ele no consultório, problemas da clínica ou do laboratório pra serem resolvidos. Isso fora as viagens, os congressos, encontros com outros médicos, textos que escreve, livros que lê, discos que faz com a mulher e por aí vai. Uma vida cheia.
Eu o conheço desde o ginásio, no Marista. Aluno aplicado, eterno primeiro de aula, muita honra e distinção, prêmios e mais prêmios. Na época era Presidente de um Grêmio Lítero-Desportivo que eu nem sabia que existia, só estou tomando conhecimento agora. A vida nos tem trazido por caminhos paralelos. Ora somos vizinhos, logo somos compadres (pois ele é o padrinho de minha filha), depois vira incentivador de minha pintura, e aí descobrimos que somos primos — e pelos dois lados. A irmã de minha bisavó casou-se e foi morar em Sergipe: é a bisavó dele. O lado Britto vem de um tronco comum: o de Irmã Dulce, que é Britto. Primos em 5º grau no primeiro caso e algo semelhante no segundo.
Conversamos sobre literatura, sobre doenças, filosofias de vida — ele empatando o meu exercício na bicicleta, eu as caminhadas dele. Surgem, na conversa, referências a Tchekhov, a Tolstoy, imito cachorros latindo, primeiro um cachorrinho magrela, depois um cachorrão, Thomaz aplaudindo as imitações, nas gozações de sempre. Está risonho, feliz e cordial. Esqueceu por um momento os estreptococos e outros cocos. Lembra o irmão Edu, recentemente falecido, com um câncer que se alastrou rápido e sem cura. E eu recordo a imagem que guardo de Edu, menino ainda, um frangote com seus 11 ou 12 anos. Vejo-o, por segundos, à minha frente…
Na oportunidade comento que temos tanta intimidade, a amizade é tão velha que a gente se sente bem e é bom conversar. Ele lamenta que eu não apareço no apartamento dele, oferece-me a casa na praia para uma temporada, “quando você quiser, basta avisar”. Uma conversa longa, que não acaba mais. Ele se despede com um vigoroso aperto de mão — no meu estilo, a mão no antebraço, como os antigos romanos — e vai embora. E lá vou eu atrás, porque me surgiu mais uma coisinha pra dizer… E reencentamos a mesma conversa, agora no outro passeio.
No dia seguinte me encontro com Lalado. Seis e meia da manhã, na esplanada do Forte, no Porto da Barra. Eu vinha de uma hora na bicicleta, na ciclovia da Centenário, fora espiar o mar. Aquele mar limpo, azul claro, espelhado e feliz do Porto. Botes e barcos de pesca ao embalo da brisa, depois do pequeno quebra-mar, imensos cargueiros ancorados lá longe, no meio da baía. Vira os pescadores conversando, desfraldando suas velas, pintando os mastros, e já ia voltando quando ouço me chamarem:
— Britto!
Lalado e Simone. Estavam guardando as bicicletas, amarrando-as num poste de luz. Simone sorri, comenta que fiquei bem com a cabeça meio grisalha. Deve haver algo poético nisso: o cinza, afinal, é algo bem mais sutil e rico do que o preto retinto. Até os meus cachos estão indo embora: o cabelo vai alisando, vai-se acomodando, vão-se embora as ondas no temporal, na tormenta, aparecem ondas lisas e mansas, talvez parecidas com esse mar azul claro que ora descortino. Um mar banhado de luz e paz.
Lalado é um companheiro velho. Antes de me conhecer, já era amigo de meu cunhado Oriovaldo. Anda de bicicleta, como eu, é vegetariano a vida toda, budista, contestador, rebelde e muito feliz. Faz o que quer e isso é a chave da mais perene felicidade. Quando converso com ele recebo uma injeção de otimismo, alegria, juventude, entusiasmo, espontaneidade, felicidade. Ele exagera tudo, tudo vai dar certo, tudo é ótimo e maravilhoso. E talvez seja. Simone vai andar e nós ficamos a conversar. Assunto é que não falta.
Lalado está com uma sandália velha, a camisa meio surrada, a bicicleta um tanto enferrujada. Diz ele que assim não desperta a cobiça de ninguém. Pode deixar a sandália e a camisa na praia que ninguém leva. Quem o vê assim, folgazão, sorridente, cabelos ainda escuros, a barbicha já com a ponta branca, não pode imaginar o seu preparo. Formado em Direito, curso de Administração, 6 anos em São Paulo, trabalhando na Price & Waterhouse, e depois dirigindo empresas na Bahia, trabalhando na Odebrecht. Largou tudo pra ser livre como um passarinho — e é. Não ter horário. Não ter patrão imediato. Poder ver as filhas crescerem, no espanto da infância.
Fez como Guimarães Rosa, foi ser burocrata, funcionário público, pra poder ter seu tempo livre. Na Odebrecht prometeram-lhe mundos e fundos, até um cargo de chefia em Paris…
— Não, eu respondi, prefiro ver as minhas filhas crescerem…
Poder ver as filhas crescerem, no espanto da infância. Poder ir para a praia, tomar sol, ver o por do sol no Farol da Barra, tanta coisa que ele queria fazer!
Essa conversa sobre a Odebrecht surgiu porque eu disse que se ele continuasse na Odebrecht seria um diretor, estaria ganhando mais de um milhão de dólares por mês, estaria na Europa — ele respondeu “é mesmo” e me contou essa parte de sua vida que eu nem conhecia.
Um laço firme de amizade me une com Simone e Lalado. Afinal, ele é a base de Lulu Cascatinha, personagem do meu primeiro livro, COCO DE BRASILEIRO — foi assim que foi detonado todo o meu processo criativo, literário. E ele sabe disso.
Volto pra casa e lhe mando um e-mail que termina com a seguinte frase, um statement, como dizem os americanos:
Amizade antes de tudo — tesouro que não tem preço e que está nas ruas e no coração dos amigos.

demais crônicas no arquivo Crônicas do site www.bahiapress.com.br

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